Quem foram os responsáveis pela desjardinização de nossas vidas, do mundo que habito, do espaço que te serve de moradia?
Aonde foi parar tudo aquilo que os séculos foram semeando nos campos de solos firmes, onde fomos construindo nossa história? Quem sabe, como em um acervo de coisas antigas, um grupo de insurgentes guarde as sementes das florestas incendiadas, os restos das copas que sombrearam tantas calçadas. E, os mais românticos escondam nos bolsos as memórias das pétalas que coloriam o jeito de viver, naquela terra onde muitos dançavam, outros cantavam e todos, todos, podiam contemplar céus azuis, limpos das poeiras que hoje os desbotaram.
Parece que houve, em certa época, o costume de colocar ordem na paisagem. Pessoas eram disciplinadas nos institutos de ensino para desjardinar os lugares onde decidiam viver, substituindo o agreste pelo que formalmente aprendiam nessas faculdades. Uns eram peritos em arquitetar habitações empilhadas, umas em cima das outras, cada vez mais altas e imensas. Entre eles se destacavam os que, desprezando tradições, inovavam projetando esculturas gigantescas, que serviam para que enormes colônias de humanos nelas morassem e criassem seus filhos. Muitas delas eram solenes e monumentais, dedicadas ao trabalho. Chamavam a atenção apesar de alguns desconfortos que provocavam – ou pelo abuso do vidro ou pela ausência de janelas com a intenção de simular discos voadores. Mas isso não importava, o essencial era a arte, não a arte de viver, mas a arte de contemplar todo isto de queixo caído.
Nessas escolas as mulheres e os homens eram também instruídos a domesticar a mata inculta. Não satisfeitos com toda uma sorte de podas e modificações genéticas, inventaram dispositivos que substituíam as plantas por aparelhos que produziam os mesmos (pelo menos isto era o que pensavam) efeitos, seja para regularizar a temperatura ou produzir chuva ou até criar espécies de sois que iluminavam enquanto o astro-rei visitava outro hemisfério. Pensando que o jardim não tinha mais utilidade prática, inventaram a paisagem decorativa, onde tudo era disciplinado de modo a crescer controladamente. A tecnologia era tão avançada que os perfumes que as plantas soltavam em momentos restritos do ano, ou do dia, eram desfrutados a todo o momento graças aos aerossóis ambientais e aos cosméticos que possuíam engenhocas químicas dando-lhes muita persistência – inclusive superior aos dos jasmins e das roseiras e bem mais simples de serem aproveitados. Como consequência as flores começaram a serem abolidas e os pôsteres, com ilustrações bucólicas, entraram no lugar delas, facilitando a vida de todo o mundo que podia se dedicar a atividades mais práticas do que cuidar de plantas.
Uma paisagem incrivelmente árida começou por dominar os cinco continentes e um raro mal estar dominou essa geração. Nada lhes faltava… nada, mas a vida tinha perdido a cor, esta tinha ficado na herança biológica e nos pôsteres floridos que decoravam as paredes. Tinham desjardinado a paisagem por completo. Eu, por aqui, consegui refugiar-me neste lugar esquecido e solitário de onde peço socorro. Não sei se existe alguém para ouvir-me.
Em algum lugar do mundo, 31 de dezembro de 2312
Autor: Raul Cânovas